sexta-feira

   A dona Arcângela foi a minha professora da primeira à quarta classe. Tratávamo-la por «minha senhora». Todas as frases acabavam em «minha senhora»: «Posso ir afiar o lápis, minha senhora?», «Posso ir à casa de banho, minha senhora?», «Posso ir ao quadro, minha senhora?». A professora era diferente de todas as mulheres que tinha conhecido até aí. Tinha anéis com pedras em quase todos os dedos. Tinha o cabelo sempre arranjado. Tinha os olhos pintados. Falava de maneira diferente. Falava como as pessoas da televisão. Falava correctamente. A professora, «minha senhora», era uma senhora.
   E começavam as manhãs em que as letras surgiam uma a uma, as vogais, as cantigas das vogais cantadas em coro. Cada uma das consoantes desenhada vinte vezes numa linha. As consoantes picotadas em papel de lustro. A letra «B». A Letra «C». A letra «D». E o livro de leitura, o Papu em todos os textos: o «B»arco do Papu, o «C»ão do Papu, o «D»ado do Papu. Um «b» e um «a». «bá». um «r», «bar»; um «c» e um «o», «có»: «barcó». E, a essa velocidade, o nosso mundo. À janela, um frasco de iogurte, vidro lavado, com um algodão embebido em gotas de água, a proteger um feijão espigado. E nós, todos os dias, todos os dias, a irmos vigiar o feijão. Entre esses, o dia em que a menina mais bem-comportada foi ter com a professora e disse: «Minha senhora, o feijão começou a germinar.» Importante e solene.
   Durante o recreio, nós comíamos pão com tulicreme que as nossas mães nos enviavam, pão que a minha mãe me guardava na mala amarela. A memória terna e infantil da minha mãe. Durante o recreio, corríamos sem parar porque queríamos chegar muito depressa a todos os lados.


 

E os números. Os problemas que eram impossíveis de compreender verdadeiramente: «O José tem 63 anos. O seu filho nasceu quando o João tinha 30 anos. Quantos anos tem o filho do José?» Eu tinha 6 anos acabados de fazer, recortava formas em folhas de cartolina, imaginava a vida do Papu quando não estava a ensinar os meninos a ler e a escrever e , dentro de um frasco de vidro, no meu interior, havia alguma coisa que começava a germinar para sempre.



José Luís Peixoto, In Abraço

quinta-feira

o teu sono anoiteceu mais que a noite

o teu sono anoiteceu mais que a noite
e hei-de escrever-te sempre sem que nunca
te escreva sei as palavras que fechaste
nos olhos mas não sei as letras de as dizer
ensina-me de novo se ensinares-me for
ir ter contigo ao teu sorriso ensina-me
a nascer para onde dormes que me perco
tantas vezes numa noite demasiado pequena
para o teu sono num silêncio demasiado fundo
dormes e tento levantar a pedra que te
cobre maior que a noite a pedra que
te cobre e tento encontrar-te mais uma vez
nas palavras que te dizem só para mim
o teu sono anoiteceu mais que as mortes
que posso suportar e hei-de escrever-te
sempre e mais uma vez sozinho nesta noite


José Luís Peixoto, In A Criança em Ruínas